ENFOQUE SISTÊMICO 1

Maria Lúcia M. Coelho e Sérgio Rodrigues

 Introdução

Desde o início de sua existência o ser humano busca compreender a vida que o cerca. Este percurso de conhecimento se desenvolveu através da somatória de ciclos ascendentes onde cada forma de percepção da vida e de ação decorrente se desenvolvia, depois passava a um período de maturação e finalmente, esgotado seu potencial, se transformava em campo fértil para novos ciclos de aprendizagem.

Mas estes ciclos mais ou menos evoluídos, com potencialidades maiores ou menores, se distribuem através das ciências, das culturas, e das nossas maturidades individuais.

Em várias áreas da ciência, nas várias culturas assim como nas nossas infinitas individualidades, estruturam-se formas de perceber a vida, de estabelecer conceitos e de definir como se deve agir.

Isto em si não é um problema, é uma coisa natural, e assim criamos os chamados paradigmas  que são as formas como percebemos e atuamos no mundo. São as nossas regras de ver o mundo.

Isto pode se tornar um problema e uma grande limitação quando estas formas de percepção e de conceituação vão se tornando muito rígidas. Quando estas regras se enrijecem e se transformam no único modo de ver e de fazer, “isto é chamado de paralisia do paradigma ou doença fatal da certeza…, e esta doença é mais fácil de se contrair do que se possa imaginar….[1]

Costumo dizer que têm pessoas tão bem “formadas” que se tornam “indeformáveis”…

A evolução do conhecimento humano através da seqüência de ciclos evolutivos vai, na prática, sendo representada por uma seqüência de “pacotes” de paradigmas.

A formulação de novos paradigmas é feita por pessoas e ciências incomodadas pela limitação dos velhos paradigmas. É de se esperar que encontrem resistências das comunidades de pratica que adotam os velhos paradigmas.

As comunidades de prática são comunidades constituídas por um grupo de participantes interdependentes que fornecem o contexto de trabalho no interno do qual os membros constroem, seja uma identidade compartilhada, como também desenvolvem coletivamente uma visão sobre o trabalho e sobre o mundo. Daí costuma derivar a resistência aos novos paradigmas.

A experiência em diferentes organizações, paises e culturas aconselharam buscar sempre uma visão paradigmática sistêmica por inúmeras razões.  Mas ao mesmo tempo reconhecendo que uma visão mais abrangente não elimina todas as outras em todas as situações. Se um paradigma foi desenvolvido para uma situação, às vezes bastante específica, é de bom senso que seja considerado.

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O pensamento sistêmico, de uma forma geral, pode ser definido como uma nova forma de percepção da realidade. Segundo Capra (1996) quanto mais são estudados os problemas de nossa época, mais se percebe que eles não podem ser entendidos isoladamente. São problemas sistêmicos, o que significa que estão interligados e são interdependentes. Deve-se sempre partir do princípio de que o todo e mais que a soma das partes, tendo desta forma o sistema como um todo integrado cujas propriedades essenciais surgem das inter-relações entre suas partes. Entender a realidade sinteticamente significa, literalmente, colocá-la dentro de um contexto e estabelecer a natureza de suas relações.

A. Einstein já assinalava esta interligação dos problemas:

 

Um erro comum é imaginar que podemos resolver “todos” os problemas dividindo-os em partes e observando o que está falhando. Isto pode nos distanciar das relações entre as partes onde pode residir a real causa ou fatores que contribuem para o problema. Um raciocínio convencional (reducionista) é reduzir o problema a “isto” ou “aquilo”, enquanto o pensamento sistêmico define “isto e aquilo”.

 

A visão sistêmica apresenta a idéia de inter-relação entre os objetos e seres vivos, as coisas não são separadas, apenas ficam separadas momentaneamente ou mesmo aparentam estar separadas. Temos que ter cuidado com esta ilusão de separação, pois ela pode não ser bem assim. Os objetos e os seres vivos estão em constante relação, há uma troca tanto subjetiva como objetiva nessas relações, não podendo ser estudadas, vistas, analisadas, entendidas separadamente.

A essência do pensamento sistêmico é visualizar o mundo de uma forma ampliada entendendo suas relações. Isso aumenta os ganhos uma vez que, o modo como você aborda os problemas afeta diretamente a forma como as soluções são encaminhadas.

Vou agora restringir e direcionar o foco desta reflexão para a sua aplicação no campo das relações humanas e da psicoterapia

Nós vivemos em um universo relacional e é neste universo que vamos continuamente construindo a nossa percepção do mundo, a nossa visão da vida e o nosso desempenho pessoal e profissional.

Facilidades ou dificuldades, prazeres ou tristezas da nossa vida pessoal e profissional estão intimamente relacionadas à extensão e ao tipo de relacionamentos que vamos construindo no nosso dia-a-dia.

A saúde das nossas relações e os recursos que podemos encontrar nestes relacionamentos estabelece a base de sustentação de nossa saúde global e de nossas perspectivas na vida

Do ponto de vista sistêmico, vemos o indivíduo sempre inserido e partícipe de sistemas ou subsistemas como o sistema familiar, o sistema profissional e o sistema social entre tantos outros possíveis e existentes. Acho importante então resumir o que se entende por sistema.

Podemos conceituar sistema como um conjunto de objetos e de relações entre os objetos e entre os seus atributos.

Os objetos são os componentes ou partes do sistema, os atributos são as propriedades dos objetos, e as relações mantêm o sistema coeso.  Cada objeto, em última análise, é especificado pelos seus atributos.

Portanto, enquanto os “objetos” podem ser os indivíduos, os atributos que servem para identificá-los são os seus comportamentos de comunicação (em vez de, digamos, atributos intrapsíquicos). Descrevemos melhor os objetos de um sistema interativo quando não falamos de indivíduos, mas de pessoas que se comunicam com outras pessoas.

Finalmente é indispensável compreender bem o conceito de relação, que é o que mantém o sistema coeso.

Quando uma pessoa comunica algo a outra(s) pessoa(s) ele transmite não somente um conteúdo, mas também um aspecto de “comando”, ou seja como a comunicação deve ser entendida. Isto também pode ser classificado como “metacomunicação” (comunicação sobre a comunicação). Entende-se então por relação em um sistema relacional “o modo como devemos compreender a comunicação e, portanto as ligações hierárquicas”.

Por isto Einstein acentuou tanto o aspecto das relações entre as partes no estudo dos problemas de um sistema.

Um casal ou uma família quando chega a setting terapêutico deve ser vista como um sistema com toda esta dinâmica de comunicações, de comportamentos e de relações.

O marido e a mulher construíram este sistema, mas com superposições e interações de outros sistemas familiares de onde provêm e que servem de modelos a serem seguidos ou a serem evitados. São valores, modos de ver a vida, de como agir diante desta ou daquela situação (quantos paradigmas!!!…) Em função disto criam vínculos na relação de casal [2], criam regras de comportamento, do que é aceitável, de atitudes que motivam, de como interpretar o comportamento do outro, e assim sucessivamente.

Mas como os componentes deste sistema participam de outros sistemas (profissional, por exemplo), eles podem sofrer influências de outras formas de ver e agir na vida (paradigmas). Se estas influências se estabelecem de maneira mais efetiva isto acaba tendo reflexos nas comunicações e relações do seu sistema familiar. Na maioria dos casos isto é construtivo e seus sistemas evoluem, mas em alguns casos isto pode fragilizar vínculos do casal, alterar valores e estabelecer novos paradigmas. São estas situações de desconforto ou mesmo de profundo desentendimento que os casais e as famílias chegam ao setting terapêutico.

São, portanto, sistemas com dinâmicas estabelecidas que estejam sofrendo com a intromissão de outros valores que são percebidos como:

  • Mudança de comportamento
  • Mudança de valores
  • Mudança de comportamento em resposta a estímulos que antes produziam outro efeito.
  • Mudança de objetivos de um dos parceiros ou dos dois.
  • Dificuldade de comunicação entrando num processo conhecido como “pontuação[3] que são os erros na “tradução” do material analógico em numérico e que muitas vezes os fazem desembocar na impenetrabilidade.
  • …….

Através da aplicação de técnicas ou elaboração de perguntas o terapeuta deve manter, por todo o tempo, esta visão sistêmica e a lógica que orienta quem trabalha:

  • Com um sistema que interage com outros sistemas,
  • Com indivíduos que se comunicam verbal e analogicamente, entrando em “pontuações” e situações mais extremas, em um “Jogo Sem Fim3
  • Com relações estabelecidas e que podem estar sendo questionadas.

Esta visão sistêmica ajuda e dá uma bússola ao terapeuta quando percebe dinâmicas individuais e busca vê-las inseridas na dinâmica do sistema do casal ou da família.

A compreensão do funcionamento dos sistemas e de suas constantes retroalimentações como dinâmica que busca reforçar as relações – entendidas como metacomunicação sobre a comunicação – e as possibilidades de estabelecimento de um Jogo Sem Fim, me faz lembrar um outro pensamento de Einstein sobre o desafio que um membro de um sistema destes passa a ter para encontrar sozinho uma solução adequada para determinados problemas que surgem com rompimento de vínculos e de valores do sistema:

Muitos dos problemas significantes que enfrentamos não podem ser resolvidos usando o mesmo tipo de pensamento que nós usamos quando criamos estes problemas.

Este tema estimula longas considerações, mas deixarei isto para quem quiser se aprofundar neste tema e, para isto, sugiro 3 livros (entre tantos bons) ao fim deste comentário.

Para concluir vou fazer um breve comentário sobre o filme “Invictus”[4] que sugiro seja visto por quem ainda não viu.

Acho que ele é um excelente exemplo de uma visão sistêmica e de como ocorrem mudanças com esta visão. O protagonista principal é quem reforça, com a sua postura, esta visão e nos possibilita refletir sobre este enfoque.

É importante lembrar também que é uma história real. Isto significa que uma Visão Sistêmica, se aplicada pragmaticamente e com o “exemplo pessoal de comportamento”, traz resultados onde outras visões “cartesianas” não conseguiram.

Mandela se comportou o tempo todo como um agente de mudança sistêmico.

  • Ele estudou e efetivamente compreendeu que na África do Sul não existia um sistema cultural, político, social, étnico, econômico, etc. A África do Sul era um aglomerado de tudo isto.
  • Ele estudou, nos 27 anos de prisão, a dinâmica de todos estes subsistemas, seus valores, suas dinâmicas e viu que existia uma possibilidade para formar um grande sistema.
  • O filme destaca uma das ações fundamentais, mas ele trabalhou anos em tantas outras ações para formar o sistema que ele sonhou. Nas ações do filme ele se colocou sempre de forma construtiva, nunca de maneira crítica ou discriminatória (não integradora).
  • Ele soube do desejo racista e vingativo da federação que queria banir e humilhar o time dos “brancos” proibindo até o uso da sua camisa, mas não impôs nada. Seduziu o grupo, motivou e conseguiu, por um voto apenas, “salvar” o time dos brancos. Os brancos eram elementos do sistema que ele estava construindo. As relações não deveriam ser relações discriminatórias ou se perpetuaria o ódio e as retroalimentações destruidoras do sistema em formação.
  • Ele estudou o time de Rúgbi e percebeu a liderança do seu “capitão”. Não o convocou…, ele o convidou para um chá. Conversou e, para as pessoas atentas, procurou motivar o potencial de liderança dele para que tirasse “leite de pedra” do time.
  • Lenta e pragmaticamente ele foi motivando integrações entre grupos de brancos e de negros quando levou o time de Rúgbi para uma favela. As resistências do começo se dissolveram e se materializaram em abraços e orgulho recíproco. Os subsistemas começavam a se integrar.
  • Depois de uma corrida do time pela manhã, no dia seguinte a uma partida vencida, eles receberam um convite para um passeio de barco que levou o time e seus familiares até a prisão onde viveu Mandela e tantos outros. A emoção foi muito forte para todos. No dia seguinte o capitão da equipe fala para a sua mulher que não estava pensando no jogo, mas “como Mandela poderia perdoar aqueles que o condenaram a passar 27 anos naquela cela de 3m x 3m”. Era o exemplo concreto, verdadeiro, de quem sabia que seus objetivos estavam focados no futuro e que só deveria olhar para o futuro.

O capitão do time se motivava a lutar, a “tirar leite das pedras” pela África do Sul e passava a mesma motivação.

  •  Antes do jogo e no meio de inúmeras reuniões de estado ele decorou o nome de todos do time de Rúgbi e foi até o treino cumprimentá-los e desejar boa sorte. Lá deu ao capitão não um premio em dinheiro, mas uma poesia que o ajudou a buscar forças na prisão quando as suas fraquejavam.

Com isto ele mostrava que em um sistema todos são importantes e fundamentais. Todos!

  • Mandela usou a poesia como metáfora, que é um instrumento frequentemente usado nos atendimentos sistêmicos com casais e famílias.
  • Ele suspendeu seus compromissos de governo e assistiu a classificação do time adversário para a final. Ele também fazia parte do sistema e, portanto, tinha que participar mesmo não sendo um técnico de Rúgbi. Ele não se colocava fora do sistema.

Não alardeou nada. Pensou e agiu.

  • Foi à partida. Entrou em campo com a camisa e o boné com as cores do time que antes era odiada pelos negros da África do sul. O estádio estava lotado. Brancos e negros só viam o time que os representava não importando mais as cores dos jogadores ou de suas camisas. Todos cantaram o hino nacional, inclusive os brancos que não o aceitavam. Pronto! O sistema começa a andar pelas suas próprias pernas.
  • Mandela não cumprimentou burocraticamente os jogadores do time adversário. Ao mais terrível jogador adversário confessou, ali no aperto de mãos, que ele (Mandela) tinha um pouco de medo dele, assinalando que o presidente da república estava bem inserido no sistema que ia enfrentá-lo. Tanto que o jogador adversário ficou com uma expressão de certa “perplexidade”. De certa forma esta foi mais uma contribuição que ele podia dar ao sistema sem alardear nada.
  • Foi para a arquibancada e se comportou apenas como um membro que observava o sistema, porque agora ele se reconstruiu e começava a caminhar sozinho.
  • Do lado de fora, sua filha, tão resistente às idéias sistêmicas do pai e com paradigmas discriminatórios e vingativos, vibrou e chorou com a vitória do subsistema brando que lutava (e sangrava mesmo) pela construção do grande sistema da África do Sul.
  • Um carro de polícia isolado na rua deserta da porta do estádio, que no início da partida se incomodou com um garotinho negro que ficava por perto para ouvir a narração no rádio do carro, acabou numa comemoração com abraços emotivos após a vitória. Era o sistema se reorganizando e se integrando de uma forma mais saudável.
  • Em bares negros e brancos comemoravam a vitória do time da África do Sul, mas para o observador atento, provavelmente para Mandela, o que se viu foi o início da formação de um sistema saudável representando um país.

Em síntese:

  • Mandela funcionou como um agente reflexivo, observando o sistema (time de rúgbi) e devolveu a eles estas reflexões através de suas observações, perguntas, posturas, metáforas e comentários geradores de mudança.
  • Ele resgatou histórias carregadas (contaminadas) de problemas de forma que pudessem ser “recontadas” de uma maneira mais saudável. Foi uma reconstrução do sistema (time de pretos e brancos, de uma nação) resgatando forças, possibilidades e formas de ver o mundo que foram paralisadas e adormecidas com o tempo.

 

 

Sugestão de livros:

  • Vasconcelos Maria José Esteves, Pensamento Sistêmico – O Novo Paradigma da Ciência, Papirus Editora, 3ª Edição.
  • Andersen, Tom, Processos Reflexivos, Editora Noos, 2ª edição ampliada.
  • Watzlawick Paul, H. Weakland John, Fish Richard, Mudança – Princípios de Formação e resolução de Problemas, Editora Cultrix
  • Watzlawick Paul, Janet Beavin, Don D. Jackson, Pragmática da Comunicação Humana, Editora Cultrix

 

 


[1]Maria José E. de Vasconcellos, Pensamento Sistêmico – o novo paradigma da ciência, Editora Papirus, 3ª edição, pg. 33

[2] Vínculo pode ser definido como uma estrutura dinâmica que liga uma pessoa à outra e que engloba a pessoa na sua totalidade. O vínculo pode ser sadio, ajudando na estruturação do Conceito de Identidade, ou neurótico comprometendo o indivíduo. O vínculo está presente onde quer que haja sistema e estrutura.

 

[3] A cada pontuação restringem-se cada vez mais as possibilidades de existir uma outra hipótese para o comportamento recíproco. Numa seqüência de comunicação, cada troca de mensagens, restringe o número de possíveis movimentos sucessivos. Corre-se o risco de se chegar a um “Jogo Sem Fim”.

[4] Invictus acompanha o período em que Nelson Mandela sai da prisão em 1990 e torna-se presidente em 1994. Na tentativa de diminuir a segregação racial na África do Sul, o rugby é utilizado para tentar amenizar o fosso entre negros e brancos, fomentado por quase 40 anos. O jogador Francois Pienaar é o principal nome. Filme de Clint Eastwood. Atores principais: Morgan Freeman e Matt Damon

2 Responses to ENFOQUE SISTÊMICO 1

  1. wellington mousinho pereira disse:

    nossa obrigado!! ja faz dias que pesquiso sobre enfoque sistemico e nao compreendia na essencia. voces foram os que mais se aproximavam do que estava procurando

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