Juares Soares Costa
Vamos começar nossas reflexões sobre o Pensamento Sistêmico, com a discussão da noção de paradigma. Esta é uma palavra muito usada atualmente, com significados variados. Com certeza você já escutou alguém dizendo:
– Nossa empresa estabeleceu um novo paradigma na relação com os clientes.
– Este é nosso paradigma no campo da administração.
– Temos que nos adaptar aos novos paradigmas de comportamento para o século XXI.
Será que todos estão usando a palavra com o mesmo significado? Provavelmente não. Vamos ver por que.
Em seu livro, “Pensamento Sistêmico, o Novo Paradigma da Ciência”, Maria José Esteves de Vasconcellos nos propõe um exercício curioso. Sugere que em tarjetas de papel, escrevamos partes de ditados populares. Por Exemplo: “Quem semeia vento…, Em casa de ferreiro…, Quem com ferro fere…., e assim por diante. Em igual número de tarjetas, vamos escrever a complementação dos ditados, mas fazendo alterações. Em vez de “ Colhe tempestade, ou “O espeto é de pau”, vamos escrever frases diferentes. “Quem semeia vento… Fica resfriado”, “Em casa de ferreiro… o churrasco é na grelha”. E assim por diante até completarmos todos os ditados.
Em seguida distribuímos aleatoriamente as tarjetas com as metades dos ditados para um grupo de pessoas, que deverão circular pelo espaço em que estão, lendo as frases das outras pessoas, até formarem pares. Nas várias ocasiões em que fizemos este jogo, confirmamos o que diz a autora:
“Você provavelmente verá que aqueles que receberam a primeira parte do provérbio resistirão a aceitar a Segunda parte modificada. Tendo uma expectativa já formada sobre a segunda parte da frase, insistirão em procurar a frase “ “correta”, ou seja, o provérbio conhecido. Os que receberem a Segunda metade da frase não terão expectativas e poderão aceitar prontamente uma articulação com alguma outra frase.
…Poderíamos dizer que as pessoas foram influenciadas por seu “paradigma de provérbios” ou seja, por sua crença sobre a forma “correta daqueles provérbios”. (Vasconcellos, 2002, pg 29)
A palavra paradigma vem do grego parádeigma, e significa padrão, modelo. Em todos os níveis de nossas vidas somos guiados por nossos paradigmas, por nossos padrões a respeito de como deve ser o mundo, de como ele funciona, quais são suas regras. Em cada família, em cada pessoa, há sempre um conjunto de paradigmas, que norteia, e ao mesmo tempo limita nossa forma de viver e pensar.
Em seu livro A Estrutura das Revoluções Científicas (1962), Thomas Khum nos propõe a idéia de um paradigma científico, definido como “uma constelação de realizações – concepções, técnicas, etc…- compartilhada por uma comunidade científica e utilizada por esta comunidade para definir problemas e soluções legítimos” (Khun, 1962). A partir da definição de Khun, Fritjoj Capra introduziu a noção de paradigma social, como sendo “uma constelação de concepções, de valores, de percepções e de práticas compartilhados por uma comunidade, que dá forma a uma visão particular da realidade, a qual constitui a base da maneira como a comunidade se organiza”.(Capra, 1996, pg 24).
Ao longo da história da humanidade, em cada comunidade, em cada povo, houve um paradigma, uma forma de ver o mundo, que predominou, e através do qual as pessoas organizavam seu cotidiano, criavam explicações para os fenômenos da vida e da morte. Outras visões de mundo sempre estiveram, e estão presentes, mas é importante ressaltarmos aqueles paradigmas que ficaram como identificação de cada período da história da humanidade.
Neste trabalho, vamos nos focalizar nos três períodos mais recentes e delimitados da história do mundo ocidental: A Idade Média, a Idade Moderna e o período contemporâneo, muitas vezes chamado de período Pós-Moderno.
Da Antiguidade até o final da idade Média (por volta do final do século XV), predominou o chamado paradigma Religioso. Nesta visão de Mundo, a Verdade existe em um plano superior, divino.
A divindade está no centro de tudo, e o conhecimento é acessível a poucos que seguirem uma vida norteada pela religiosidade, pela busca de uma espiritualidade. O conhecimento possível era sempre limitado e o método era o aperfeiçoamento pessoal, a ascese, a meditação, a dedicação religiosa.
Conhecer era aproximar-se do plano divino.
O paradigma religioso da idade Média trazia princípios norteadores interessantes, como a vida em comunidades pequenas e coesas, uma interdependência dos fenômenos espirituais e materiais. As necessidades dos indivíduos ficavam abaixo dos interesses da comunidade, buscava-se mais uma compreensão do que um controle do mundo.
Com a mudança de paradigma que ocorre quando passamos para a chamada Idade Moderna, podemos dizer que “junto com a água do banho, jogou-se a criança fora. “Foram aos poucos sendo abandonados muitos destes princípios que eram úteis, especialmente no sentido de ajudar o ser humano a perceber-se como “parte de”, conectado com as pessoas e o mundo. Este é, aliás, o significado inicial da palavra religião, do latim religare, religar-se, reconectar-se. Penso que pode ser a isto que Bateson se referia quando falava “do melhor da religião”.
“Antes mundo era pequeno, Por que Terra era grande. Hoje mundo é muito grande, Por que Terra é pequena. Do tamanho da antena parabolicamará…” (G.Gil, 1991). Os versos da canção nos falam do mundo que mudou, que se expandiu. Começou a era das grandes navegações, das grandes descobertas, novos continentes, novos instrumentos científicos em busca de novas verdades. Do final do século XV até o século XX, surgem novos mundos e uma nova visão de mundo. Quando Copérnico, e depois dele Galileu começam a explorar os céus com o recém criado telescópio, dão início a uma revolução, tão grande que até hoje vivemos seus benefícios e suas conseqüências. A terra não é mais o centro do Universo, Deus não está no centro do mundo. Novas explicações e novas leis são criadas, O mundo passa a ser visto como uma máquina perfeita e previsível. O método para conhecer e controlar o mundo passou a ser o método Científico, da observação e dedução de leis, supostamente universal. È como se o mundo fosse uma máquina com um jogos de engrenagens e mecanismos perfeitos
A verdade estava no mundo, regido por leis exatas, matemáticas. Era possível um conhecimento total, acessível a quem estudasse e compreendesse as leis. O método era científico, analítico, que implicava em dividir o todo em suas partes mínimas. Do conhecimento das partes viria a Verdade.
Descartes, um nome que se confunde com o da ciência, em seu Discurso sobre o Método, dividiu o ser humano em duas partes, a mente, res cogitans, a coisa pensante, que não seria objeto da ciência. A mente ficaria com o campo da filosofia, das ciências não exatas, mais tarde da psicologia. O corpo era a res estensa, a coisa extensa, ampla, que podia ser palpada, tocada, estudada, dissecada. Este era o campo da ciência. E esta foi também à base da divisão mente-corpo que tanto limitou e limita nossa compreensão e tratamento do ser humano. O pensamento ou paradigma científico olhava, e ainda olha o mundo através de três conceitos básicos: Simplicidade, Estabilidade e Objetividade.
O conhecimento, a verdade, estariam na coisa simples, isolada, reduzida ás suas menores partes. Pessoas, partes do corpo, células, moléculas, átomos. E seria um conhecimento estável, válido para todas as pessoas em todos os tempos e lugares. O conhecimento seria também objetivo, independe do sujeito, da pessoa que conhece. O observador colocava-se fora do fenômeno observado, supostamente não interferindo com este.
À medida que foi se organizando, o pensamento científico trouxe para a humanidade um progresso sem igual em outras eras da humanidade, ao mesmo tempo em que suas descobertas ajudavam a colocá-lo em xeque. O final do século XIX e a primeira metade do século XX foram ao mesmo tempo o apogeu e o início do questionamento dos paradigmas científicos. A teoria da evolução de Darwin, a Psicanálise de Freud, são exemplos de desenvolvimentos da ciência, que ajudaram a questionar alguns de seus pressupostos. Mas foi no campo da Física, que se confunde com a própria noção de ciência, que os pressupostos da simplicidade, da objetividade e estabilidade começaram a ser questionados e derrubados.
À medida que partículas cada vez menores foram sendo estudadas, não se chegou à verdade absoluta, mas a um nível de complexidade, instabilidade e subjetividade.
“Muitos destes paradoxos estavam ligados à natureza dual da matéria subatômica, que surge às vezes como partículas, às vezes como ondas: Os elétrons, costumavam dizer os físicos naqueles dias, são partículas ás segundas e quartasfeiras, e ondas às terças e quintas….. O princípio de indeterminação mede o grau em que o cientista influencia as propriedades dos objetos observados pelo próprio processo de mensuração. Os cientistas já não podem exercer o papel de observadores objetivos e imparciais; eles estão envolvidos no mundo que observam, e o princípio de Heinsenberg mede este envolvimento. …é uma medida de quanto o universo é uno e inter-relacionado. Nos anos 20, os físicos, liderados por Heisenberg e Bohr, constataram que o mundo não é uma coleção de objetos distintos; pelo contrário, ele parece uma teia de relações entre as diversas partes de um todo unificado.” (Capra,1988,pg14).
Não é só na física que os conceitos foram mudando. A biologia começou a estudar as relações e inter-conexões entre os seres vivos, e noções como meio ambiente, habitat, passaram a fazer parte do arcabouço de uma visão mais tarde conhecida como ecológica. ”A percepção ecológica profunda reconhece a interdependência fundamental de todos os fenômenos, e o fato de que, enquanto indivíduos e sociedades, estamos todos encaixados nos processos cíclicos da natureza.”(Capra, 1996, pg 25). A antropologia já não se satisfazia com uma observação científica de relatos de viajantes, ou com o estudo de pessoas extraídas de seu contexto. As pesquisas de campo trazem novas luzes e questionamentos. O que deve ser observado? Assim como na Física quântica, perceberam que o antropólogo interferia com o fenômeno observado, e que a relação interpessoal, e não o indivíduo isolado deveria ser a unidade de estudo. Em vários campos cresceu o interesse por temas como comunicação, retroalimentação. Começam a se organizar conhecimentos, novos conceitos, que mais tarde se agruparão em torno da Cibernética (Ciência do controle e da comunicação nos seres vivos e nas máquinas) e da Teoria Geral dos Sistemas, de Von Bertallanfy.
O fim da Segunda Guerra Mundial é hoje visto como o marco do fim da Modernidade e o começo de um novo período, que ainda estamos vivendo, que na falta de um nome melhor, tem sido chamado de Pós-Modernidade. A explosão das bombas atômicas em Hiroshima e Nagasaki representaram ao mesmo temo o apogeu e o início do declínio da crença na Ciência como sendo o caminho pra a redenção e o bem-estar da humanidade. Os cientistas que criaram a bomba atômica ignoravam (ou ignoraram?) as consequências sistêmicas, ecológicas da radiação. Mas desde então, não foi mais possível ignorar, ou negar, que há uma ligação em tudo, como escreveu, quase um século antes, o chefe indígena de Seattle em sua carta ao presidente americano de então. Da Simplicidade entramos na era da Complexidade; da Estabilidade para e Instabilidade, e da Objetividade para a Intersubjetividade.
“O Modernismo está relacionado a uma tradição filosófica ocidental que entende o conhecimento como objetivo e fixo. Conhecedor e conhecimento são independentes, e a linguagem é a representação da verdade objetiva e da realidade. Pós-modernismo é um termo amplo que se refere não somente a uma época, mas também a uma perspectiva filosófica, que inclui uma crítica ideológica dos fundamentos do pensamento literário, político e social…ele questiona aquilo que é tido como certo e universal, incluindo os discursos dominantes e as práticas culturais – crenças, verdades, leis, instituições sociais….O Pós-modernismo apóia a idéia de que aquele que conhece participa da criação do mundo em que vive, observa e conhece: de que aquilo que é criado e conhecido é somente uma das várias perspectivas e possibilidades; de que aquilo que é conhecido ou que se crê que seja conhecido muda através de interações comunicativas (Anderson, H.1966).
Apesar de não serem sinônimos, o Pensamento Sistêmico situa-se no marco da Pós-Modernidade.
A ciência objetiva ainda costuma dizer que as coisas são. … É interessante lembrarmos que para a Teologia, o verbo Ser é um atributo da Divindade. Só o Deus É, independentemente de tempo, espaço, lugar. A discussão sobre este campo teológico não é nosso objetivo, mas chamamos atenção para o fato de que quando usamos o verbo ser, muitas vezes, sem perceber, estamos atribuindo ao objeto, qualidades e características que remetem a algo essencial, que seria intrínseco ao objeto, em qualquer contexto e sem relação com o sujeito que as refere.
Quando passamos para o referencial do Pensamento Sistêmico, é como se nos dispuséssemos a abandonar o uso do verbo Ser, e começarmos a usar ao verbo ESTAR. Passamos a pensar em termos de contextos, relações, significados que tem validade apenas local. Dizer que uma pessoa é violenta é muito diferente de dizer que uma pessoa está violenta, que se comporta de um modo que alguém chamou de violento. Deixa de ser uma característica da pessoa, para algo que passa a ser descrito em termos de comportamentos, de relações, de um contexto cultural que define tal comportamento como violento. Abrimos espaço para questionarmos como foi que aquela pessoa aprendeu a se comportar daquele modo. Será que ele sempre age do mesmo modo em todos os contextos? Com todas as pessoas? Enfim, ao sairmos da tirania do Ser, da idéia de essência, temos a possibilidade de encontrar novos caminhos para a compreensão e busca de solução para os problemas humanos.
Faça você também o exercício proposto por Gianfranco Cecchin em seu artigo “Exercícios Para Manter Sua Mente Sistêmica” (1991). Escolha uma história de uma situação profissional, e ao relatá-la, não faça uso do verbo Ser. Você verá que ocorrem mudanças. Compare-as com o que descrevemos no quadro abaixo:
A passagem do Paradigma Científico para o Pensamento Sistêmico trás para todos nós uma ampliação, nem sempre fácil de ser entendida e ser vivida. De verdades absolutas e certezas, passamos para um mundo de múltiplos significados e incertezas. De um universo, de uma única versão da história, passamos para os multi-versos. De afirmações, passamos para as perguntas. Os critérios de validação para um conhecimento não estão mais embasados apenas nas leis da ciência, mas se apóiam no diálogo, no consenso, e principalmente na Ética.
Ética vem do grego, ethos, que significa comportamento, atitude, e de óikos, que se refere à morada, o local habitado pelo homem. Pode ser nossa casa, nossa comunidade, nosso país, nosso planeta. A Ética situa-se acima da moral. Moral vem do latim mores, que fala dos costumes. Os costumes são mais locais, temporários, variáveis. A Ética é mais duradoura, permanente, mais abrangente. Por exemplo, mudam os costumes, a moral sexual, mas permanecem valores éticos que falam do respeito á vida humana, ao direito à integridade física de cada pessoa.
“A ética nos possibilita a ousadia de assumir, com responsabilidade, novas posturas, de projetar novos valores, não por modismo, mas como serviço a moradia humana.”(Boff, L. 1997)
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ANDERSON, Harlene “ Uma Reflexão sobre a colaboração Cliente-Profissional” . Family Systems ¨&Health, 14:193-206, 1996 (original em inglês)
BOFF, Leonardo. “A Águia e a Galinha – Uma Metáfora da Condição Humana” Petrópolis RJ- Vozes- 1997
CAPRA, Fritjof (1996) “A Teia da Vida. Uma compreensão científica dos sistemas vivos”.São Paulo: Cultrix (1988), “Sabedoria Incomum. Conversas com pessoas notáveis”.São Paulo: Cultrix, 1987
VASCONCELOS, Maria José Esteves de. “ Pensamento Sistêmico – O Novo Paradigma da Ciência”, Campinas, SP: Papirus, 2002